A seis
anos do maior evento esportivo da história do Brasil, os Jogos de 2016, eu já
desconfiava da resposta. Mas achei saudável duvidar. Corri atrás e descobri que
o já implantado projeto Bolsa-atleta, em vigor desde 2004, vai ganhar o item “Atleta
de Ouro”. O esboço da proposta inclui apenas atletas de modalidades olímpicas e
paraolímpicas individuais que estejam ranqueados entre os dez primeiros e
tenham chances reais de obter medalhas nos próximos Jogos Olímpicos ou
Paraolímpicos, conforme critérios definidos pelas confederações.
Como o
Barão de Coubertin jamais subiu numa prancha, Jadson André e Adriano de Souza,
nossos heróis no front, não devem ver a cor das 15 mil pratas. O texto de apresentação
do projeto do “atleta de ouro” até diz que, dependendo da disponibilidade
financeira, poderão ser atendidos atletas de modalidades não oficiais. Como
disponibilidade financeira é palavra proibida no Brasil e o programa de ajuda
já existente ajuda apenas esportistas olímpicos de vários níveis, o mais
provável mesmo é que os surfistas não vejam um tostão.
O
pedagogo Pierre de Coubertin sonhava educar os jovens pelo desporto. Daí nasceu
o maior evento esportivo de todos os tempos, os Jogos Olímpicos da era moderna.
O surfe, pelo menos na sua expressão natural, não muita pretensão
pedagógica, num sentido formal da expressão. Pelo contrário, volta e meia pinta
como arma da molecada contestadora, que sonha demolir os castelos de disciplina
erguidos nos esportes olímpicos.
Não sei
se algum dia o surfe vai entrar na redoma olímpica - e nem sei se
isso é de fato uma boa ideia, mas deixo a polêmica para outra coluna. Ainda
assim, o prazer inventado por polinésios é um esporte, um esporte
fascinante. Não faltam praticantes, admiradores, competições e adversários para
legitimar uma bolsa de “atleta de ouro” para os ídolos brasileiros que
lutam para estar entre os melhores.
Não culpo
meu amigo deputado ou qualquer outro político pela eventual indiferença à
velha prática polinésia. Já vi outros amigos executivos de empresas
gigantes terem o mesmo comportamento. Um deles omitiu do chefe e de todos os
colegas que passaria metade das férias dentro d’água, numa clássica surftrip
com amigos de infância. “É uma precaução corporativa”, me revelou certa vez,
com um sorriso envergonhado.
Mas
o tempo certamente vai sepultar toda a vergonha de ser
surfista. Era pior 20 anos atrás, bem pior. Basta ver o crowd
de profissionais liberais bem-sucedidos que infesta as praias do Rio
todo dia às 6h da matina. No meu prédio, um recanto familiar de classe
média, há pelo menos quatro vizinhos surfistas. Todos eles pais. Desde o
início da cultura do surfista até hoje, lá se vão mais de 50 anos. Surgem
os primeiros avós que dividem o line-up com seus netos, como é comum na
Austrália.
Outro
dia, Gerry Lopez apareceu surfando uma bomba em Jaws num anúncio de
página inteira da comportada editoria de Economia do jornalão Estado
de São Paulo. Tudo isso para vender o sofisticado relógio suíço
Omega. Na época da publicação, corri atrás do mito para ouvir o que ele pensa
dessa história de surfe no mainstream.
Disse o
mestre: "Os surfistas começaram a pegar onda porque era uma
coisa diferente, que fazia com que fossem diferentes. Representava
mais a liberdade que outros esportes. A identidade dos surfistas
é única, o surfe sempre esteve fora do mainstream... dentro de sua
própria pegada. Mas por ser um esporte atraente, ganhou popularidade até um
ponto que se tornou parte do mainstream no mundo atual. Talvez alguns
surfistas esperem que o esporte atinja o mesmo status de esportes como golfe e
tênis, mas a maioria preferiria que fosse menos popular."
Vou mais
longe: talvez, no futuro, haja até uma bancada de deputados surfistas no
Congresso Nacional. Talvez haja bolsas-surfista aprovadas em lei. E talvez, por
isso, a experiência do esporte não seja mais a mesma. Na verdade, não há
caminho de volta. Será, como diz o mestre Lopez, apenas uma
"experiência diferente".
* texto publicado na coluna Surfe Deluxe, na revista Fluir, em 2010.